quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

QUEM NUNCA TEVE UMA RUA?

"Ah que saudades que eu tenho da aurora da minha vida,
da minha infância querida, que os tempos não trazem mais…”
(Casimiro de Abreu)
“…Rua da União…
Como eram lindos os montes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade…”
(Evocação do Recife, Manuel Bandeira)
Eu tive a minha. Rua 7 de Setembro, em Governador Valadares, Minas Gerais. Eu me lembro, como se fosse hoje, do dia em que nos mudamos para lá, vindos de uma cidade menor, São Geraldo do Tumiritinga. O que essas cidades tinham em comum? O enorme rio Doce, com seus remansos e corredeiras, com os frondosos pés de ingá debruçando suas bagas veludosas sobre as águas amarelas.  O rio serpenteava no sopé da montanha Ibituruna, abrindo-se em dois leitos, formando no meio a Ilha dos Araújos. Hoje, a Ibituruna é trampolim para os voos de asa delta, inclusive para campeonatos internacionais. Minha rua ficava um pouco longe do rio. Mas isso não era problema. A gente, rapidinho, ia pra lá de bicicleta.
Pois bem. Chegamos à Governador Valadares, que um dia se chamou “Figueira do Rio Doce”, nome muito mais bonito e poético que governador qualquer coisa.  A família toda:  meu pai, minha mãe, eu e meus seis irmãos. Não éramos seis, éramos sete. Como a nossa rua que também era sete, 7 de Setembro. E alugamos um barracão de fundo de quintal, exatamente no número 3.539. A luz elétrica – que tinha nos postes de rua – levou algum tempo para ser instalada em nossa casa. Assim, no começo, estudávamos à luz de lampiões e lamparinas à querosene.
Rua poeirenta no estio e lamacenta nas épocas de chuva. Mas nós, crianças, sabíamos tirar proveito de todas as estações. No verão era bom para se jogar bola,  brincar de caubói, empinar papagaio (também chamado de pipa e raia),  jogar bolinha de gude (ou bolinha de vidro, biloca) e até mesmo io-iô e bilboquê. E no inverno? Ah, com a chuva vinham a lama,  as enxurradas, os barquinhos de papel, os jogos de finquinho. Lembro-me que era muito bom sentir o cheiro da terra molhada e sair correndo atrás das tanajuras: “ – Cai, cai, tanajura, na panela de gordura…” E como era terrível o som das trovoadas acompanhadas dos flashes dos relâmpagos. Os coriscos nos levavam a cobrir espelhos, a guardar tesouras e a ficar bem escondidos sob as cobertas, tremendo de medo de que algum raio caísse sobre nossas cabeças.
Pela 7 de Setembro trafegavam poucos carros, muitas bicicletas, uma enorme quantidade de carroças de burro e charretes. As bicicletas eram o transporte mais comum. As carroças de burro geralmente passavam cheias de sacos de milho, feijão e arroz, indo e vindo, sempre na direção da estação de trem que ficava perto lá de casa. As charretes transportavam, principalmente, as “mulheres da vida fácil”, pois bem pertinho da 7 de Setembro ficava a “Figueirinha”, a zona boêmia, chamada pelos locutores da ZYV-21, emissora de rádio local,  de “a parte mais alegre da cidade”.
Era uma rua de muitos meninos e muitas meninas, de muitas brincadeiras tarde afora, depois das aulas. Brincadeiras que entravam noite adentro, sob os postes, à luz do luar. A  noite nos transformava em heróis de nós mesmos: caubóis, fantasmas, contadores de histórias, meninos que brincavam de pique-pega, estátua, garrafão, gato no pote, cabra-cega, esconde-esconde, boca-de-forno. E de meninas que pulavam corda, que brincavam de roda-ciranda, de amarelinha, de passa-anel e tantas outras brincadeiras que nos faziam parecer “donos do mundo”, esquecidos do próprio tempo.
Na rua 7 de Setembro, aliás em toda a Governador Valadares, àquela época, não tinha ainda televisão. O rádio, junto com o cinema, o circo e os parques sazonais eram as principais diversões da cidade. Eu me lembro, criança, ouvindo novela de rádio: O Direito de Nascer foi um grande sucesso. Ouvia também Carlos Gonzaga cantando “não te esqueças, meu amor, que quem mais te amou fui eu…” E Celi Campelo enfeitando o seu sapatinho com um laço cor de rosa. Elvis Presley dizendo “It’s now or never, tomorrow will be too late…” Nilo Amaro e seus Cantores do Ébano cantando “no Abaeté tem uma lagoa escura, arrodeada de areia branca”. Mas o que me fazia a cabeça mesmo eram as aventuras de “Jerônimo, o Herói do Sertão”, pelas ondas da rádio Mayring Veiga, um original de Moisés Weltman: “Filho de Maria, homem nasceu… Serro Bravo foi seu berço natal… Com o Moleque Saci para ajudar… O Jerônimo faz qualquer homem tremer…” Jerônimo tinha até uma noiva, chamada Aninha. E era um tiroteio danado contra os malfeitores, socos, sopapos, relinchos e ruído de cascos de cavalo. Mas havia também romances, beijos estalados, declarações de amor,  uma mistura de aventura,  emoção e magia que a linguagem do rádio traz, estimulando a imaginação e favorecendo a criação de cenários dentro da nossa cabeça.
À noite, dentre outras canções, costumávamos cantar, lá na rua 7 de Setembro,  a melodia da trova que fazia uma comparação entre a primavera e a mocidade, do poeta fluminense Casimiro de Abreu: “Iguais parecem quando a vida as solta/mas no entanto elas não são iguais/a primavera passa e depois volta/e a mocidade não nos volta mais..”
Quem nunca teve uma rua? A verdade é que sempre existirá alguma rua em nossas vidas, seja no passado ou mesmo agora. E cada uma delas terá um sabor diferente. Cada uma delas terá as suas próprias histórias.  Como a minha rua 7 de Setembro, cheia de canções e de acontecidos. Como a sua também deve ter. Histórias e canções talvez bem semelhantes a essas. Pois todas as ruas guardam suas histórias, como velhas relíquias entesouradas nos baús da lembrança. O tempo passa, mas essas lembranças ficam. E ganham um contorno de suavidade, uma leveza de bolha de sabão flutuando, perdida no tempo. Um tempo que a modernidade engoliu. Um tempo que não volta mais.

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